domingo, 14 de junho de 2009

Nosso dinheiro

12/06 - 16:25 , atualizada às 14:59 13/06 - Régis Bonvicino, especial para o Último Segundo



A Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, do Ministério da Cultura, que analisa pleitos de dinheiro através da Lei Rouanet, desacolheu o de Caetano Veloso, de 2 milhões de reais, para patrocínio de seu “Tour Caetano Veloso”, a turnê do trabalho “Zii e Zie”, lançado esse ano – mais um CD medíocre. A Comissão já havia negado pedido de Maria Bethânia ano passado, revertido pelo ministro, que tem poderes para tanto.

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Paula Lavigne, empresária de Veloso, pressionou, segundo a mídia, o titular da Pasta, com inúmeros telefonemas. Objetivo: quer que Juca Ferreira reverta, também, a recusa. Pela Lei Rouanet, a empresa que faz o patrocínio saca dinheiro diretamente do tesouro, ou seja, dinheiro do contribuinte, daquele que paga impostos – seu dinheiro. Essa lei deveria se destinar às artes eruditas e não à indústria do entretenimento, da qual Veloso faz parte, embora um dia – nos remotos anos 1960 e 1970 – tenha aspirado à cultura.

O patrocínio deve se voltar para a música erudita, abandonada no País, à pesquisa literária, à preservação do patrimônio histórico e arqueológico, ao teatro de autor, ao cinema de inovação, à arte digital, ao folclore, às festas populares etc. A Constituição, em seu artigo 215, não deixa dúvidas quanto ao sentido de cultura, para o Estado: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes de cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”.

Como afirmei, Veloso não é manifestação cultural, mas, indústria do entretenimento. Só mesmo José Miguel Wisnik (USP), Eucanaã Ferraz (UERJ) e outros sabujos acreditam que Veloso seja “um poeta”, um autor importante para a cultura brasileira (já o foi há três décadas). O artigo da Constituição respeita a autodeterminação cultural do cidadão e, segundo Araujo e Nunes Junior, “atribui ao Estado o dever de democratizá-la”.

Como se vê, o ato de Veloso é atentatório ao conceito de democratização da cultura. Ele tem o direito de petição, todavia, peca do ponto de vista ético, do ponto de vista da moralidade pública, ao solicitar dois milhões de reais ao Poder Público, ao cidadão, para alavancar os lucros de sua turnê. Uma reles turnê! O salário mínimo é de R$ 465,00! Há uma depressão econômica no mundo. Veloso, um senhor de 67 anos, é, hoje, um milionário que, desde “Circuladô de Fulô” (início dos anos 1990), não produz um trabalho no mínimo decente: repete-se, dilui-se, fatura. De uns três anos para cá, tornou-se um tardo-roqueiro.

Façamos então a comparação dentro de seus parâmetros atuais e de sua própria geração. Imaginem Mick Jagger e os The Rolling Stones solicitando um milhão de dólares para a turnê “A Bigger Bang” à Rainha. Imaginem Bob Dylan requerendo ao NEA (o equivalente ao ministério da cultura nos Estados Unidos) um milhão de dólares para a turnê de “Together Trought the Life” recém lançado igualmente. Não é ridículo, porque, de acordo com Nelson Rodrigues, o ridículo é uma virtude. Prefiro não usar a palavra adequada.

O que significa esse “pleito” de Veloso? A ganância tomou o primeiro plano, sob o verniz, vagabundo, de “arte”, manipulada por “empresários” (sic). País patético com seus cantadores de boleros em declínio, sob todos os sentidos. O pedido em si é uma afronta ao próprio Veloso dos anos 1960 e 1970 e desvela a dinâmica da Tropicália, “movimento” (bancário?), que liderou, ao lado de Gilberto Gil – este um caso à parte, que não merece uma linha sequer de comentário.

Veloso, o velho, embora não seja mais cultura, é sintoma da cultura brasileira de hoje (de sujeito à sintoma) – de sua inversão total de valores, compartilhada pelo Estado, que, por várias vezes, patrocina indústria do entretenimento. Uma vez o poeta João Cabral de Melo Neto (1920-1999) – o maior poeta brasileiro ao lado de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) – me disse frase que ficou no meu subconsciente: “Artista subvencionado é mau artista”. Por isso, sou contra essa Lei Rouanet, que coopta mentes, que as transforma em ovelhas do Estado e cria uma arte obediente e não de afronta, uma arte “pós”.

O então Caetano falou uma vez, em 1967, de “linha evolutiva da canção” e, deduzo, dos costumes do País. Triste Afoxé! A canção (tipo Veloso) está morta desde os anos 1980 no Brasil. É fantasma a serviço da conta bancária. É hipócrita porque se pretende “arte”, “cultura”, quando não passa sequer de má indústria do entretenimento. Exemplo de boa indústria até cultural: Amy Winehouse.

O que Veloso quis dizer com linhas como "Não me amarra dinheiro não/ Mas a cultura”, de “Beleza Pura”? O presente diz do passado e a “produção” de Veloso, caindo nos palcos, com sua voz operística kitsch, necessita ser reavaliada diante de seus fiascos e de pedidos como esse. A Tropicália precisa ser reavaliada. Ao que tudo indica, foi mais importante pela presença do poeta Augusto de Campos, sóbrio e recolhido, do poeta Torquato Neto (1944-1972) e dos músicos eruditos como Júlio Medaglia e Rogério Duprat (1932-2006). Prefiro a Jovem Guarda de Roberto, Erasmo e Vanderléa, que nunca quis vender gato por lebre.

Veloso não seguiu o exemplo de Dorival Caymmi (1914-2008): não soube envelhecer. Não fala a língua do silêncio de João Gilberto. Não tem a força e a vitalidade de Jorge Bem Jor. Talvez lhe reste mesmo o papel de “pedir” dinheiro – indevidamente – ao Estado. E, caso Juca Pereira o libere – intensificar um escândalo chamado Caetanogate. Parabéns à Comissão

COMENTO:
O velho desejo da esquerda de confundir conceitos e mamar nas tetas do governo.

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